quinta-feira
Terra de Caruaru, de José Condé - Capítulo 1
Terra Plantada em Pedra
(Prólogo)
ORIGEM
No
comêço: rancho para pernoite das boiadas vindas do sertão bruto -
principalmente do Piauí e do Alto Moxotó - em demanda do litoral. Porque as
águas abundantes e o verde pasto crescendo nas várzeas do Ipojuca faziam do
sítio pouso obrigatório da vaqueirama em trânsito. Havia os índios, é verdade;
também o insólito mistério da caatinga cinzenta espreitando o silêncio dos carrascais.
Mas os pioneiros tinham fôrças para sobreviver.
Nascia
nos campos o bredo caruru. Verde - ao atingir a altura de vinte centímetros -
era comer saudável para o gado; sêco, porém, virava veneno, que consumia em
poucos dias a vida de uma rês.
Foi
a origem.
Passava
a estação das chuvas e o tempo se prolongava numa agonia de sol e mormaço. De
quando em vez, uma rajada de vento investia contra a galharia, erguendo grossas nuvens de poeira
amarela e quente. Um silêncio de fim de mundo descendo das serras e serrotes,
envolvia o rancho onde os tangerinos, em rêdes armadas no avarandado, olhavam,
atônitos, um céu de azul agressivo.
Então, o bredo murchou. Quando os bichos de quatro pés o mastigaram pela primeira vez, estava sendo escrita a página inicial da fundação de uma cidade. Foram morrendo aos poucos, diarréia e paralisia. De saída, os bezerros; depois os novilhos,
por fim o gado maduro.
Os vaqueiros assistiam a tudo sem compreender, embora sentissem na própria carne a desgraça que sôbre êles se abatera.
Outras boiadas desceram do alto sertão e tiveram destino
idêntico.
Os indios - por sua vez - intensificaram os ataques e semearam o terror em tôda a região da Borborema.
Um dia, alguém disse: - “Lugar maldito!”
Daí, as manadas mudaram de rumo em busca de outros pousos; permaneceram, apenas, o rancho arruinado e um nome estig
matizado: Caruru - afora o silêncio prêso no coração do carrascal.
Depois, as chuvas foram abundantes. O pasto verde voltou
a crescer. O Rio Ipojuca se esponjou em vazantes de limo fértil.
Floresceram os pés de baunilha, jurubeba, sassafrás, velame, jucá, jurema e pau-d'arco. O cheiro de terra molhada amaciava os ares. O inverno era assim: uma solicitação para a vida.
A solicitação tocou fundo o coração de José Rodrigues de Jesus, senhor da Fazenda Juriti, distante algumas léguas do Sítio Caruru. Um dia apossou-se das várzeas abandonadas onde se erguia outrora o pouso para pernoite das boiadas do Piauí e do Alto Moxotó. Além de escravos e agregados, levou consigo arcas de couro, selins e alforjes, gado - sobretudo a vontade de afundar novas raízes na terra.
Passaram-se
os anos. Sucederam-se as sêcas, os invernos de chuva farta.
José
Rodrigues de Jesus olhava os campos, agora sem a ameaça dos índios: “A sombra
da mão de Deus é generosa.”
Na
planície, o gado se multiplicava; na zona molhada dos
brejos cresciam cafèzais, canaviais e
mandiocais. Outras levas de escravos e de agregados vieram engrossar o
agrupamento humano. Os forasteiros - levados pelo instinto de defesa -levantaram
casas nas imediações da fazenda, que, de Caruru, se transformara em Caruaru.
Crescia, assim, o arruado, crescendo as necessidades. Nasceu a feira semanal,
onde a população - na sua maioria pequenos criadores e pequenos agricultores
que pouco a pouco iam deixando de depender diretamente de José Rodrigues de Jesus
- fazia permuta de café, rapadura, farinha, gado, ovelhas.
Em
1771, o próprio José Rodrigues de Jesus tomou a iniciativa de mandar construir
uma igrejinha sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição. E quando o pároco
de São José dos Bezerros - sede da comarca - veio rezar a primeira missa, houve
luminárias, colchas estampadas enfeitando janelas, foguetes, música de pífanos
e bombo, enormes panelões de barro dourados pela gordura das buchadas de
carneiro.
Estava
plantada a cruz.
O
arruado cresceu em tôrno da casa-grande da fazenda, da igrejinha, estendendo-se
na direção sul. Envolvendo o templo de linhas simples e o casario de porta e
janela, surgiam, distante,
de leste para suleste, as Serras São
Francisco; o Alto do Vassoural, no mesmo rumo; ao leste e noroeste, as
Guaribas; ao sul, os Cavalos; a oeste, o Monte do Bom Jesus, êste quase dentro
dos limites urbanos.
Novas
picadas foram abertas no coração da caatinga e em poucos anos se transformaram
em fazendas de criação, fazendas conquistadas depois que os índios foram sendo encurralados
e expulsos para o sertão. Com os latifúndios, os primeiros senhores poderosos e
as primeiras lutas, agora entre êles próprios, por um veio de água ou um
riacho. Preguiça, Salgado, Cajá, Contendas, Cedro, Azevém, Serraria - os
baluartes da conquista.
Se
nos anos de sêca a terra escaldava, murchava o mato e morria o gado, na estação
das chuvas os aguaceiros caiam dia e noite sôbre as telhas vãs, empapava o chão
dos roçados, fazia transbordar o leito do Ipojuca. Rêdes rangiam ao suave
embalo de corpos satisfeitos. Pinicados de violas tristes se misturavam, na
sombra da noite, com o coaxar de sapos e rãs nas cacimbas. O amor esquentava o
corpo dos homens.
Sobrevieram
mortes e nascimentos. Mas o que havia sido plantado com o suor e a vontade dos
primeiros vaqueiros que palmilharam as terras do sertão, ali estava, sob o
velho céu do agreste.
BREVE HISTÓRIA DE JOÃO TEIXEIRA DA
PREGUIÇA
Certa
manhã de junho de 1790 o vaqueiro Agripino foi bater à porta do Comandante João
Teixeira de Carvalho, senhor de muitas terras, muito gado e escravos, lá para
os lados da Preguiça:
-
Venho pedir a proteção de vosmecê pra mandar punir o assassino do meu filho
Rosendo.
O
rapaz tivera uma discussão â-toa com um vaqueiro do Coronel Leite, da Jurema, e
horas mais tarde fôra apunhalado pelas costas.
Comandante
João Teixeira ouviu tudo e disse:
-
Vá-se arranchando por aí; vou pensar no acontecido.
Afastou-se
para o avarandado da casa-grande, onde sua mulher já o aguardava para o almôço.
Era índia, vinte e poucos anos mais môça que o marido. Numa das muitas
escaramuças na Serra Carapotós, Maria de Jesus - que tinha nesse tempo nove
anos de idade - fôra aprisionada e levada para a Preguiça. Quatro invernos mais
tarde casara-se com João Teixeira.
A
comida estava na enorme mesa sem toalha: a cabaça cheia
de leite para a farofa, carne de bode,
macaxeira e rapadura.
A
chuva, lá fora, recomeçara fina e persistente. Nuvens pesadas tocavam o cume
das serras distantes. Através da janela que abria para o copiar, Comandante João
Teixeira via as reses pastando. Conduzido pelo escravo Coriolano, um carro de
bois, em marcha lenta, seguia na direção do paiol. Que diferença entre essa
paisagem calma, estável, e aquela outra dos tempos da conquista - pensava. E,
para que tudo fôsse exatamente como era, quanto sacrifício, quantas lutas!
Recordava as noites de expectativa e inquietação, os índios podendo atacar a
fazenda quando menos se esperasse; também a incerteza quanto à chegada do inverno,
do qual dependia a vida das poucas cabeças de gado e do pequeno roçado aberto
no carrascal. Mas não havia sido apenas
isso. Expulsos os bugres da região e
estabelecido cada senhor em
seu pedaço de terra, começara outra
luta: matavam-se agora os próprios brancos, pela posse de um simples veio de água
ou de um riacho - porque água significava sobrevivência. Tanto sangue
derramado, o ódio separando familias inteiras, clavinotes-de-travesseiro
dormindo na pontaria das tocaias. E tudo por causa da água salobra, rara nas
épocas de estiagem.
João
Guaxinim subiu os degraus que iam dar no avarandado
e, tirando o chapéu de couro,
dirigiu-se ao senhor:
-
Mandou-me chamar?
-
É o caso do filho daquele vaqueiro que apareceu aqui de manhã - respondeu o
comandante. - O môço foi assassinado por um cabra do velho Leite, que não quis
castigar o criminoso por ser homem de sua confiança.
Mastigou
um pedaço de carne de bode:
-
Não é a primeira vez que os vaqueiros da Jurema fazem
das suas. Não acho direito isso não.
-
Como vosmecê deve estar lembrado - declarou Guaxinim
- no mês passado o Borema foi
apunhalado por um tangerino do Coronel Leite.
Comandante
João Teixeira ergueu os olhos da cuia de leite, fixando o vaqueiro:
-
Quando vai passar em Caruaru a próxima boiada da
Jurema?
-
Por tôda esta semana.
-
Pois bem: vosmecê e seus dois irmãos vão à vila e levem
também o pai do finado. É pra êle
apontar o culposo.
Assim
que Guaxinim saiu, João Teixeira voltou ao avarandado. Parara de chover. Mas as
serras cachimbavam alto, sinal de novos aguaceiros para a bôca da noite.
Sentou-se na rêde, cruzou as pernas, tirou uma grande pitada do corrimboque de chifre
de boi.
Sombria,
Maria de Jesus deslizou os degraus do avarandado, sentou-se, prendendo a saia
entre as pernas. Estava grávida de cinco meses. Era feia, faltavam-lhe dois
dentes na frente. Só abria a bôca quando o marido fazia alguma pergunta. Mas
êsse ar de bicho acuado agradava a João Teixeira; amara-a, no comêço, como a
filha; agora, como a espôsa. Quem a visse ao lado dos escravos a julgaria
também cativa. Mas no dia em que o negro Coriolano lhe faltou com o respeito,
foi castigado, a mando do comandante - uma dúzia de bôlos.
O
marido chamou:
-
Vem cá, mulher.
Ela
aproximou-se, pisando mansinho, ar assustado.
-
Senta aqui no chão, ao meu pé - pediu êle.
Depois:
-
Me faz cafuné, quero tirar um cochilo. Devagarinho, Maria de Jesus.
Povoado
do Caruaru, Rua da Angolinha, numa bodega de uma porta só, os três irmãos
Guaxinim - João, Isidoro e Leôncio - mais o velho Agripino, tomavam aguardente.
-
A boiada da Jurema deve estar estourando - disse João,
o mais idoso dos Guaxinins.
O
velho Agripino era o único que não falava. Recebeu o copo de cobre, bebeu um
gole, voltou às cismas de sempre. Estava
pensando no filho Rosendo: tão môço,
tão bom vaqueiro, e agora morto, assassinado.
Apesar
das chuvas de junho, bastava o sol romper as nuvens para que as poças de lama
endurecessem, transformando-se em poeira ao menor sôpro de vento. Quando um
dêsses redemoinhos se aquietou, Leôncio avistou, lá adiante, na direção do Monte
do
Bom Jesus, a galharia dos chifres.
-
Tão chegando - falou.
O
eco do aboio já estava entrando pelos ouvidos dos quatro homens.
O
sino da Conceição acabara de anunciar meio-dia. Dois escravos passaram diante
da bodega, tangendo uma tropa de jegues. Por causa do mormaço, o casario tinha
as rótulas das janelas fechadas.
João
Guaxinim disse a Agripino:
-
Vosmecê fique lá dentro mode não ser visto.
Apanhou
o clavinote-de-travesseiro que estava atrás da porta.
A
boiada vinha-se aproximando lentamente da Rua da Angolinha, os cascos dos
animais levantando poeira. Com pouco mais alcançava a bodega.
-
Aquêle aí, o de gibão aberto no peito - apontou o velho
Agripino.
João
Guaxinim apanhou a corda e armou o laço. Fêz pontaria, arremessou. Num
instante, o vaqueiro estava no chão, aos pés do cavalo. Aconteceu tão rápido
que, quando os companheiros deram pela coisa, o homem já tinha os braços
imobilizados e era na direção da bodega. Ao mesmo tempo, Isidoro e apontaram os
clavinotes.
-
Afastem-se, cambada de assassinos - gritou João Guaxinim. O primeiro que apear
leva fogo.
Cuspiu
com raiva:
-
Podem dizer ao velho Leite que isto aqui ê obra do Comandante João Teixeira, da
Preguiça. Agora, arredem.
A
boiada já se distanciara bastante e os vaqueiros a seguiram. Mas o que ia em
último lugar virou-se para dizer:
-
Quando o velho Leite souber do sucedido, vosmecês vão ver.
João
Guaxinim, apontando o clavinote:
-
Raspe-se, antes que lhe mande uma carga de chumbo.
Isidoro
e Leôncio acabaram de amarrar o prisioneiro, atiraram com êle em cima do
cavalo, deixaram a Rua da Angolinha a tôda disparada.
Dia
de feira em Caruaru. E, como sucedia sempre, acompanhado dos Guaxinins,
Comandante João Teixeira foi ao arruado. Antes de comprar os gêneros de que
carecia na fazenda, cumpriu sua devoção: rezou um têrço aos pés da imagem de
Nossa Senhora da Conceição. Outras obrigações a seguir: tomar café em casa do
compadre Manuel Pedro, abençoar a afilhada, cavaquear um
pouco sôbre as novidades, de resto
sempre as mesmas: inverno, gado, escravos, roçado. Somente depois ia à feira,
onde ficava
até a hora de voltar para a Preguiça.
Passava
das sete horas e o sol esquentava. João Teixeira deixou a igreja e seguiu para
a Rua da Angolinha, atravessando a feira. De semana para semana - pensava êle -
crescia cada vez mais a feira do arruado. No inicio, poucos anos atrás, quase nada
existia para barganhar: farinha, sal, rapadura, carne de boi e de ovelha.
Agora, porém, ocupava metade da Rua da Frente. Da zona dos brejos, vinham não
somente café e rapadura, mas também frutas e hortaliças; da zona pastoril,
farinha de mandioca, carne, utensílios de couro. Havia também a feira de gado,
da igrejinha de Nossa Senhora da Conceição. Por outro lado, o casario da
povoação já não era aquela coisa tôsca de outros tempos. Existiam hoje
construções de tijolos, caiadas, com rótulas e clarabóias. Nhô Florêncio se
dera mesmo ao luxo de erguer um sobradinho cujos fundos davam para o Ipojuca.
“Sim - pensava o comandante - não vai custar o dia em que isto vira sede de comarca.”
O
compadre Manuel Pedro já o esperava à porta de casa:
-
Estava preocupado com sua demora.
João
Teixeira estendeu-lhe a mão:
-
Dei uma passada na bodega do Sebastião Trindade pra
encher o corrimboque.
Manuel
Pedro parecia meio nervoso e João Teixeira notou:
-
Que há, compadre?
-
Vamos entrar, o café está esperando. Depois eu conto.
Fêz
sinal aos irmãos Guaxinim:
-
Vosmecês também.
Era
uma pequena sala mobiliada apenas com três tamboretes
forrados de couro cru, a rêde e a arca;
do rebôco da parede pendia o retrato de São Sebastião.
-
Mulher - falou Manuel Pedro, voltando-se para o fundo
da casa - avie logo êste café, o
compadre chegou. E mande a menina vir tomar a bênção ao padrinho.
Sério,
virando-se para João Teixeira:
-
O velho Leite e o cunhado estão em Caruaru.
O
comandante sorriu:
-
Já esperava pela visita.
-
Vieram buscar o cabra.
-
Esta é outra história, meu compadre.
Dona
Zefinha e menina Eulália apareceram para cumprimentar João Teixeira. Disse a
mulher:
-
O café está na mesa.
-
Olhe o que lhe trouxe - falou o comandante, estendendo
a mão à afilhada - cinco ovinhos de
asa-branca.
Enquanto
tomavam café com banana comprida cozida e requeijão, Manuel Pedro indagou:
-
Que fêz do do homem?
-
Tá na Preguiça, vou dar uma lição nêle.
-
É preciso cuidado, compadre. O velho Leite ê de sangue
ruim; pode tirar vingança .
-
Não tenho mêdo de brabeza.
Bem
não acaba de falar, ouviu barulho de cascos de cavalo
diante da casa.
-
São êles - disse Manuel Pedro, olhando pela janela.
Levantaram-se.
Chico Leite e o cunhado Manuel Figueiró desceram dos animais:
-
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo - saudou o
fazendeiro da Jurema.
Todos
responderam, menos os irmãos Guaxinim, que permaneceram na sala, atentos,
porém, ao que se passava fora.
-
A que devo a visita? - perguntou Manuel Pedro.
Manuel
Figueíró, alisando o cavanhaque, respondeu:
-
Não ê para vosmecê, mas aí para o senhor da Preguiça.
-
Vamos entrar - convidou o dono da casa.
O
velho Leite:
-
O que a gente tem de conversar, conversa aqui mesmo.
Voltou-se
para João Teixeira, cara fechada:
-
Não achei direito vosmecê aprisionar meu vaqueiro. Vim buscar êle. O que ê de
vosmecê ê de vosmecê, o que ê meu é meu.
Antes
que João Teixeira respondesse, Manuel _Figueiró deu
um passo â frente, parou diante do
senhor da Preguiça, dedo erguido no ar:
-
Vamos levar o vaqueiro, custe o que custar.
lnstintivamente,
Comandante João Teixeira agarrou com a mão direita o cavanhaque de Manuel
Figueiró e começou a sacudi-lo para a frente e para trás, enquanto repetia, sem
altear a voz:
-
Vai levar não, vai levar não, vai levar não.
O
velho Leite abriu o paletó para tirar o punhal, porém susteve o gesto quando
viu três clavinotes apontados em sua direção. Imobilizado, Manuel Figueiró
olhava o cunhado como a pedir proteção.
-
Agora, vão embora - disse João Teixeira. - Vosmecês
mandam na Jurema, aqui mando eu.
O
velho Leite e o cunhado montaram seus cavalos. O primeiro, apontando o dedo
para João Teixeira, ameaçou:
-
Ainda desta vez vosmecê levou a melhor. Mas esteja certo: tornarei.
Assim
que partiram, Comandante João Teixeira virou-se para Manuel Pedro, que ainda
não se refizers do susto:
-
Bem,compadre, agora vou ver a feira; até sábado que vem se Deus quiser.
A
notícia do incidente entre os senhores da Preguiça e da Jurema - dois dos mais
poderosos fazendeiros da região - logo tomou conta do arruado e durante muitos
dias foi assunto de tôdas as conversas. Tangerinos procedentes do sertão traziam
novidades da Jurema: o velho Leite e seus cabras estavam preparando um ataque a
Preguiça. Houve mesmo quem afirmasse que
seria na sexta-feira entrante. Manuel
Pedro arreou o cavalo, botou-se para a fazenda do compadre, acompanhado do
escravo Abel. Chegou à Preguiça quase ao anoitecer, encontrou João Teixeira
deitado na rêde do avarandado. Contou-lhe ao que viera,
porém suas palavras não causaram a
menor impressão ao fazendeiro.
-
Vou mandar Maria de Jesus botar sua janta - falou o comandante.
-
Quero não, compadre. Com pouco mais estou arribando pro Caruaru.
-
Por que não pernoita?
-
Posso não. Deixei Zefinha atacada.
-
Que tem a comadre?
-
Uma dor nas cadeiras. Nada de mais não. Mas vamos ao que interessa: que
pretende fazer?
Balançando-se
na rêde, Comandante João Teixeira tirou o corrimboque do bôlso, tomou uma
pitada de torrado:
-
Ainda nem sei.
-
Por que não entrega o cabra?
João
Teixeira sorriu:
-
Entrego não.
Alteou
a voz:
-
Ô Maria de Jesus, arranje uma cuia de leite, farinha e
carne pro compadre Manuel Pedro.
Voltou-se
para o amigo, tomando nova pitada de torrado:
-
Entrego não, compadre.
E
coitado daquele que não tivesse coragem bastante para cumprir seu próprio
destino. A santa paz de Deus descia sôbre os campos envolvidos pelo crepúsculo.
Compadre Manuel Pedro voltara para Caruaru. Ainda deitado na rêde, João
Teixeira olhava o gado que se recolhia ao curral; a plantação de palmatória e
macambira, no outro lado; o imenso pau-d'arco no terreiro da casa-grande.
Já
não existia mais perigo de ataque de índios. Os tempos
haviam mudado. Mas outros perigos - e a
vida era assim mesmo - ameaçavam o homem a cada instante. Dura a lei da
caatinga. O mal não estava apenas no sol e nos carrascais traiçoeiros; estava,
sobretudo, na criatura humana, no fundo do coração de cada um. Nessa região, a
morte não era o fim; era o meio de selecionar os que mereciam viver.
“Seu
eu não tivesse matado, não estaria aqui sentado nesta rêde” - disse consigo.
Primeiro,
matara indios, porque era preciso expulsá-los das terras a serem conquistadas;
depois, conquistadas as terras, a luta para viver, a posse da água, datas e
sesmarias, cada qual mais ávido que o outro no desejo de aumentar os domínios
e, conseqüentemente, o poder. Daí as emboscadas, cadáveres secando ao sol, o
ódio jorrando com o sangue.
Não
era de agora a disputa com a família do velho Leite,
da Jurema. Por uma geração inteira,
cabras de ambos os lados haviam trocado tiros e feito mortes. Como lhe contara
o pai. Derrotados há vinte e tantos anos, os Leite abandonaram o planalto hoje
incorporado à Preguiça e foram plantar raízes mais adiante, quase à entrada do
sertão. Mas levaram consigo ódio e desespêro. Surgisse uma oportunidade - sabia
João Teixeira -estariam de volta para recuperar o perdido. As pequenas
escaramuças dos últimos tempos eram apenas sinal de que aquêle ódio continuava vivo
e inexorável.
Estava
quase cochilando, quando o vaqueiro Borema apareceu, afobado:
-
Avistaram um cabra do velho Leite rondando a fazenda.
João
Teixeira levantou-se:
-
Agarraram êle?
-
Leôncio chegou a pegar o cavalo para persegui-lo, mas
êle se botou no mundo, mais que
depressa.
Então,
tinha fundamento o que se dizia - pensou João Teixeira. “O velho Leite vem
mesmo atacar a gente, do contrário
mio mandava cabra dêle espionar.”
Disse:
-
Vá-me chamar João Guaxinim.
Quando
o homem chegou:
-
Amanhã de manhãzinha resolva aquêle caso.
Acrescentou:
-
Outra coisa: quero tôda a gente pronta para o que der
e vier.
Ainda
não amanhecera de todo quando os irmãos Guaxinim e o vaqueiro Borema trouxeram
o prisioneiro, amarrado, para o terreiro da casa-grande. Sentado na rêde da
varanda, Comandante
João Teixeira perguntou:
-
Cadê o velho Agripino?
Foram
chamá-lo.
-
Reconhece neste homem o assassino de seu filho? - perguntou-lhe o fazendeiro.
-
Em carne e osso.
João
Teixeira ergueu-se:
-
Se aproxime e olhe dentro dos olhos dêle.
O
velho deu alguns passos à frente; nenhum sinal de mêdo na fisionomia do
prisioneiro, apenas leve tremor nos lábios.
-
Veja bem - insistiu João Teixeira - O Salvador está lá em cima pra julgar
vosmecê depois.
Agripino
fixou o cabra da cabeça aos pés. De súbito lembrou-se do filho Rosendo, jovem,
bom vaqueiro, morto à traição, e encheu-se de ódio. Fêz o gesto de quem ia
puxar o punhal.
-
Não se atreva - João Teixeira gritou.
Tomando
a sentar-se na rêde:
-
Podem começar.
João
Guaxinim jogou a corda no galho mais alto do pau-d'arco.
O
comandante apanhou o corrimboque, tomou uma pitada:
-
Desamarrem êle.
No
seu passinho leve, a gravidez querendo estourar o vestido, a india Maria de Jesus
aproximou-se, ficou olhando sem ver.
-
Pronto - disse Guaxinim.
Balançando-se
devagarinho na rêde, Comandante João Teixeira falou:
-
Reze o Credo.
O
prisioneiro não respondeu. Afastou os olhos de cima das
pessoas que o rodeavam: contemplou o carrascal,
a serra, bois pastando.
-
Reze o Credo - repetiu João Teixeira, levantando-se,
com raiva.
Isidoro
indagou:
-
Arranco a língua dêle, comandante?
-
Aqui a justiça sou eu.
Acrescentou
depois, rindo:
-
Gosto de ver um cabra morrer com coragem.
João
Guaxinim colocou o laço no pescoço do prisioneiro. Tudo rápido. Num instante, o
corpo estava no ar, debatendo-se.
Tomando
mais uma pitada de torrado, João Teixeira perguntou à mulher:
-
Tá pronto o café, Maria de Jesus?
Nessa
mesma noite, o velho Leite mais seu cunhado Manuel Figueiró e uns dez cabras,
armados até os dentes, atacaram a Preguiça. Tiroteio brabo. Os homens de João
Teixeira entrincheirados dentro da casa-grande; os da Jurema espalhados no
terreiro, onde, do alto do pau d´arco, sob a lua nova, pendia o corpo
enforcado.
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